agosto 15, 2009

Era Inveja (Maitê Proença)



A muito que eu li esse texto. É sobre futebol, e quem escreveu foi Maitê Proença. Sim, ela mesmo, a da novela.

"Era Inveja

No Brasil três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de um sol junta madame e funkeira trajadas no mesmo uniforme. O futebol, que une o ladrão e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que bota o Zé do Chevete e João do Jaguar lado a lado, paralisados pela mesma encrenca. Das três brasilidades, o futebol é o que mais me intriga.

Tenho um namorado que ama a bola. É uma pessoa cheia de virtudes, mas se há uma constância em seu caráter, esta é a impontualidade. Não consegue chegar na hora, o mundo o atrapalha, a menos é claro no caso do futebol. Não falo aqui daquele jogo no estádio com hora oficial pra começar, refiro-me à pelada, ao racha, aquele bate-bola entre amigos, que no caso aqui de casa acontece três vezes por semana. O campo é longe, uma viagem, o sol a pino - não importa. Dia do compromisso logo cedo o moço fica ansioso, não pode atrasar e não há imprevisto que o segure. Nesses dias meu amor é um britânico!

Sábado desses resolvi acompanhá-lo. Os companheiros de partida não gostaram nadinha, mas gentis, fizeram que sim. Aquilo não é lugar de mulher eu já devia saber. Pra compensar o mal-estar, começa o jogo e eu bato muita palma, exagero o entusiasmo, assovio e tanto faço que o dono do campo a quem eu bajulava escancaradamente sentiu-se na obrigação de me dedicar um gol. Segue o embate com altos e baixos, a coisa aquece e pimba... um golaço, aquele chutão do meio do campo pra dentro da rede à Roberto Carlos.

As más línguas desmerecendo o artilheiro, dizem que o momento é histórico e não se repetirá - não acredito, foi jogada de mestre; vi e guardarei na memória. Continua a partida com bons momentos, outros nem tanto, uma contusão aqui, uma falta ali, um corpo caído no chão. De repente me bate uma estranheza e vou percebendo que acima da bola, das jogadas, do corre pra lá e pra cá, o que mais se via, na verdade, eram discussões, ofensas, xingamentos e uma roubalheira de fazer corar um palmito. A coisa chegou num ponto em que tive a certeza que terminado aquilo os adversários não voltariam a se falar. Acaba o jogo. Entre vitórias e desilusões, corre-se pro vestiário e devo dizer que nem na feira fala-se tão alto e ao mesmo tempo quanto num banheiro cheio de homens; eu não estava dentro, mas nem precisava... Fiquei quietinha do lado de fora esperando meu namorado, que, pela delonga, tomava um banho de Cleópatra. Assim, pude observar bem os outros rapazes que sorridentes e limpinhos iam saindo do vestiário qual amigos de infância. Aqueles mesmos que há pouco se juravam de morte agora pavoneavam-se uns pros outros aos tapinhas nas costas. Havia ali cantores, compositores, um sapateiro, o editor de um jornal, um empresário da música, atores, um jogador aposentado, dois médicos, e alguns moços das redondezas empobrecidas cuja competência em campo desequilibrara o jogo - tudo adversário de sangue na hora da bola e amigo do peito na saída pro chopp. Na pelada não há rancores, o que se passa em campo fica no campo. Nem pudores, ali são todos craques - o vírus da imodéstia ataca democraticamente. Uma beleza!

Fui-me embora com um vazio a futucar o espírito. O que nós mulheres temos de parecido, o shopping, o salão? Nem chegam perto. Não pode xingar, espernear, soltar os sapos da garganta - além do que, num e noutro, o máximo de exercício que se faz é com a língua na futrica da vida alheia - muito chato. Não havia como negar, o brinquedo dos rapazes é divertido como só, e meu vazio era de inveja.

Nós mulheres não temos nada que se compare."

Esse texto foi publicado em uma edição da revista Época em 2005, e eu também acabei de achar no site da autora.

Muito legal...

Deus abençoe,

até!

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